sábado, 20 de outubro de 2018

Como trabalhar o fenômeno das "fake news"? Um suporte filosófico.

Para começo de conversa...

O avanço tecnológico dos meios de comunicação permitiu uma crescente veiculação de informações, mas, toda informação é verdadeira? Como distinguir a informação verdadeira das intencionalmente falsas, ou das piadas, ou das obras de ficção ou de peças lúdicas?

Hoje somos parte de uma rede de produção e circulação de informações onde toda e qualquer pessoa dentro de um mesmo ambiente publica e dissemina seus pareceres. De uma perspectiva democrática este avanço tecnológico pareceu abrir possibilidades para aqueles discursos que ficavam silenciados na escala dos antes restritos meios de comunicação, na época que somente se difundia informação via circulação de palavras escritas, depois via som, depois de modo audiovisual e hoje todos simultaneamente no mundo virtual da internet.

No entanto, não podemos afirmar que somos privilegiados porque somos bem informados. Junto com a potencialização vertiginosa dos meios de comunicação, difundem-se na mesma velocidade aquilo que está recebendo o nome de fake news. O que é, afinal, "fake news"?

O que é "fake news"?

Para tentar articular uma resposta embasada vale a leitura de um pequeno artigo do Professor Doutor Diego Rais, da faculdade de Direito do Universidade Presbiteriana Mackenzie (disponível em https://www.mackenzie.br/fakenews/noticias/arquivo/n/a/i/o-que-e-fake-news/ ).

De modo simples, as "fake news" são notícias falsas que se apresentam ao público como verdadeiras. Este fenômeno não tem nada de novo na história humana, mas, com o advento do desenvolvimento tecnológico se tornou um grave problema. A dimensão e o volume de notícias falsas produzidas e circulando por nossas experiências tem afetado inclusive a validade das notícias que são verdadeiras.

Ficou difícil conseguir ter convicções de quais notícias são verdadeiras e quais são as falsas. Como podemos nos posicionar diante deste cenário? Como podemos ter um compromisso com a verdade neste ambiente onde falso e verdadeiro estão com as mesmas "roupagens", com as mesmas linguagens? Como selecionar quais são as fontes seguras e quais as fontes inseguras, sendo todas alimentadas por uma formas tão abundantes? Estas e muitas outras perguntas tem preocupado porque levam a resultados morais, políticos, educacionais, etc, que afetam a construção subjetiva das pessoas ao redor do globo.

O Professor Diogo Rais destaca para a consolidação de uma mercado, ou uma indústria, que produzem e disseminam "fake news". Os meios de comunicação se sustentam com a produção e circulação de informações, sendo assim, buscam estratégias para ampliar seus rendimentos. As estratégias utilizadas nem sempre são preocupadas com imperativos epistemológicos, morais e políticos. O mais importante para uma empresa que vive do consumo é alimentar e ampliar os bens que podem ser consumidos, as "fake news" são uma forma rápida, que exige poucos recursos de produção e são facilmente disponibilizadas. Isto talvez explique a ascensão avassaladora deste tipo de conteúdo.

Não é fácil combater este mecanismo utilizado pelo mercado, e talvez seja impossível acabar com notícias falsas, visto que historicamente sempre estiveram presentes. Como então nós, pessoas comuns, podemos lhe dar com as "fake news"?

O Professor Rais direciona que apesar das dificuldades é possível combater a propagação deste mercado alimentado pelas "fake news" utilizando como ferramenta a educação digital, embora ele não detalhe neste artigo, parece que estamos construindo esta ferramenta de acordo com a compreensão de como o mercado esta utilizando e se consolidando, isto é, compreendendo o modo como as notícias falsas são produzidas e disseminadas podemos ter uma estratégia para nos afastar delas.

Um suporte filosófico para enfrentar as "fake news".

Pensando em como podemos enfrentar este fenômeno que dificulta a formação humana pautada pela finalidade de alcançar a verdade, a primeira coisa que veio a minha mente foi o capítulo de introdução da obra Convite à Filosofia, da Professora Marilena Chaui, uma das mais importantes pensadoras da filosofia no Brasil e reconhecidamente referência no mundo acadêmico (para informações sobre sua carreira recomendo: http://filosofia.fflch.usp.br/docentes/chaui , ou http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?metodo=apresentar&id=K4727003P3 ).

Enquanto a Professora Chaui articula uma série de situações que são pertinentes para o desenvolvimento do pensamento filosófico, ela descreve uma postura intelectual que pode ser extremamente útil para buscar a verdade e combater as crenças infundadas ou as fraudes. Vamos discorrer sobre a construção do pensamento filosófico norteando a reflexão para as "fake news". 

"Em nossa vida cotidiana, afirmamos, negamos, desejamos, aceitamos ou recusamos coisas, pessoas, situações" (CHAUI, 1995, p.9). A nossa vida do dia a dia é pautada por uma série de evidências que demonstram significações e sentidos que atribuímos às coisas, pessoas, situações, sem que façamos um exercício de reflexão. Isto é, durante a nossa vida comum assimilamos certas crenças, certos valores, certos posicionamentos que julgamos pertinentes e corretos, mas nem sempre sabemos quais são seus fundamentos, nem sempre sabemos justificar porque somos do jeito que somos, não sabemos porque agimos do modo como agimos, nem porque pensamos do jeito que pensamos.

A nossa vida cotidiana é pautada por crenças silenciosas, por aceitações tácitas de evidências e muitas vezes não questionamos sobre a validade porque nos parecem óbvias ou naturais. Dentre as coisas que aceitamos sem questionamento se encontram as notícias. Muitas vezes confiamos em um texto, em um vídeo, em um áudio, mas não buscamos as suas fontes, os seus fundamentos, as coisas que sustentam a validade do que se apresenta. Cremos que o jornalista, que o escritor, que o produtor do conteúdo fará sempre um posicionamento verdadeiro, ou consideramos que os conteúdos produzidos que são verdadeiros são aqueles que se encaixam com o que pensamos sobre um assunto.

O que aconteceria se nós não aceitarmos tais conteúdos como verdadeiros? O que aconteceria se problematizássemos as evidências que temos em nosso cotidiano? Com certeza problematizar e buscar compreender em sentidos mais profundos a nossa realidade nos levaria a rever muitas de nossas convicções, fortaleceria e legitimaria outras. Neste sentido o pensar filosófico pode ser útil, a problematização do nosso cotidiano, da não aceitação imediata das coisas, pessoas e situações pode ser chamada de atitude filosófica. Nas palavras da Professora Marilena Chaiu (1995, p. 12):

"A decisão de não aceitar como óbvias e evidentes as coisas, as ideias, os fatos, as situações, os valores, os comportamentos de nossa existência cotidiana; jamais aceitá-los sem antes havê-los investigado e compreendido" (CHAUI, 1995, p.12).

Em suma, este posicionamento que a pensadora atribui como característica especifica de quem se dedica ao pensamento filosófico pode ser um instrumento para que possamos trabalhar a questão das "fake news". Talvez nos seja importante ter desconfiança de todas as notícias que temos contato e somente aceitá-las após um exame criterioso que dê segurança ao que pensamos e acreditamos.

O procedimento investigativo pode ser melhor sistematizado se unirmos duas formas de proceder intelectual, um de desconstrução e um de reconstrução, o que a Professora chama de atitude crítica. A atitude crítica é composta por dois momentos, um negativo e um positivo.

"A primeira característica da atitude filosófica é negativa, isto é, um dizer não ao senso comum, aos pré-conceitos, aos pré-juízos, aos fatos e às ideias da experiência cotidiana, ao que 'todo mundo diz e pensa', ao estabelecido" (CHAUI, 1995, p.12).

Diante da enxurrada de informações que aparecem diante de nossos olhos e são seguros na palma de nossa mão, precisamos construir um posicionamento de questionamento inicial, independente da fonte devemos partir do pressuposto que estamos diante de algo que pode estar equivocado, algo que é duvidoso. A partir daí devemos engajar a nossa energia para verificar e construir argumentação consistente para provar a verdade ou a falsidade do que se apresenta para nós.

"A segunda característica da atitude filosófica é positiva, isto é, uma interrogação sobre o que são as coisas, as ideias, os fatos, as situações, os comportamentos, os valores, nós mesmos. É também uma interrogação sobre o porquê disso tudo e de nós, é uma interrogação sobre como tudo isso é assim e não de outra maneira. O que é? Por que é? Como é? Essas são as indagações fundamentais da atitude filosófica" (CHAUI, 1995, p.12).

Para compor com um mínimo de rigor a validade de um assunto podemos utilizar a sugestão da Professora. Somos capazes de saber o que é o fato noticiado? Somos capazes de saber por quê é assim o fato noticiado? Sabemos como é o fato noticiado? Responder estas três perguntas poderá fornecer uma segurança sobre o que aparece diante de nós como informação.

A face positiva é compor uma resposta estruturada racionalmente que permita a convicção do que vamos defender como legítimo ou como ilegítimo. Evidentemente, quanto maior for sua capacidade investigativa mais complexa será a sua resposta e mais complexa será a forma como você compreenderá a realidade, por isso, longe de ser uma trabalho fácil, posicionar-se diante das "fake news" exigirá que você entre numa estrutura de vida completamente diferente do senso comum que nos encontramos na posição inicial, por isso, nós que estudamos e fazemos o pensamento filosófico dizemos que a Filosofia transforma o seu modo de ser, uma vez que é impossível permanecer o mesmo depois de validar e invalidar coisas, pessoas e situações, nos tornamos mais exigentes conosco, com as coisas, com as pessoas e com a situações.

Em suma, pensar de modo filosófico exige uma mudança da vida, um tempo diferente para que possamos avaliar com método, com sistematicidade, as coisas que se apresentam em nossos cotidianos como evidências.

Para uma conclusão...

Evidentemente este texto propõe um tratamento simples para a questão das "fake news", muitas outras abordagens e referências poderiam ser utilizadas. Em outra ocasião podemos tratar destas referências e de outros fatos.

O que pretendemos expor através deste texto é que as "fake news" podem ser enfrentadas com uma mudança de nosso posicionamento diante delas. Não devemos aceitar sumariamente as coisas que aparecem em nossas redes sociais, em nossos perfis, em nossas páginas favoritas de visitação. Devemos questionar, confrontar e estabelecer uma atitude crítica. Talvez precisamos nos tornar um pouco mais "filósofos (as)".

A atitude filosófica pode tratar a realidade com a complexidade que ela merece, sem cair em simplificações que deterioram o nosso modo de compreender as coisas, as situações e as pessoas, podendo evitar pré-conceitos, pré-juízos e a aceitação do falso como expressão do verdadeiro.

Referências Bibliográficas:

- CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. 6ªedição. São Paulo: Editora Ática, 1995.
- CHAUI, Marilena. Biografia - disponível em: http://filosofia.fflch.usp.br/docentes/chaui .
-CHAUI, Marilena. Currículo Lattes - disponível em: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?metodo=apresentar&id=K4727003P3.
- RAIS, Diogo. O que é "fake news". Disponível em: https://www.mackenzie.br/fakenews/noticias/arquivo/n/a/i/o-que-e-fake-news/ , publicado em: 13.04.2017 , visualizado em 20.10.2018.


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Att.
Prof. Ricardo Lopes

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