Calma, estimado leitor, não vou chamar ninguém de genocida, nem quem merece.
O que tem sido o centro de minhas reflexões nestes tempos de Covid-19 é uma discussão narrativa acerca das mortes que derivam da pandemia. Uma parcela de nossa sociedade entende que deve ser computada e publicizado todos os números das mortes e estes devem ser os referenciais para nossas tomadas de decisão. Outros, por sua vez, falam "que coisa pessimista, vamos falar sobre a vida e os recuperados".
O Ministério da Saúde do Brasil, órgão oficial que visa reunir todas as informações da pandemia, escolheu o segundo discurso, o suposto discurso de valorizar a vida. Em suas publicações em LETRAS GARRAFAIS estão os chamados números da vida, aqueles que representam a quantidade de infectados, os que estão em tratamento e os que receberam o status de curados, mesmo que os estudos sobre Covid-19 ainda estejam em desenvolvimento sobre a possibilidade ou não de contrair o vírus mais de uma vez, ou quanto tempo dura a imunidade de quem já contraiu o vírus. Para descobrir os números de mortos oficiais você e eu que façamos as contas, assim os detentores do poder sabem quem são os "mórbidos" que se interessam por isso.
Nesta última semana o Brasil ultrapassou o número de 70.000 mortos relacionados às enfermidades do Covid-19. Talvez você já tenha percebido que este que vos escreve estaria no grupo dos "mórbidos".
Em minha defesa, assim como dos demais que aparentemente estão alinhados com meu escopo de ideias, gostaria de salientar que a preocupação com o número de mortes não é fruto de um pessimismo, ou de um desejo de mostrar o fracasso da gestão da pandemia. Não sou um influencer, nem sequer candidato a gestão pública, sou só um cidadão, destes bens comuns mesmo.
O número de mortes é importante em minha visão de mundo porque quando anunciam mais um óbito, desta enfermidade ou de qualquer outra, eu penso o número como uma pessoa. Penso em um homem, uma mulher, um sujeito LGBT+, penso em elites, penso em periferias, penso em centros urbanos, povos rurais, povos nativos indígenas, penso em negros, penso que todas estas possíveis pessoas deixam familiares, amigxs, entes queridos, deixam pessoas que afetam em sua localidade. Não é o óbito 1, ou 100 ou 10.000 ou 70.000, é um João, uma Maria, um sujeito com nome, sobrenome, um sujeito que é importante para a vida de alguém e em alguns casos para a minha própria, em alguns casos porque o número de pessoas que me relaciono não é tão grande assim, confesso não ter tantos amigxs.
Na minha humilde visão de mundo, saber quantas pessoas estão morrendo, desta e de tantas outras enfermidades ou causas, é humanizar a fatalidade. Respeitar quem deixou a existência, é respeitar em última instância a própria vida. Quando paramos de lidar com o fenômeno da morte podemos passar a normalizar mortes que eram evitáveis. Sim, existe uma morte evitável em situações determinadas.
A morte é sim um fator inexorável da vida, um dia todos chegaremos ao fim, mas, existem situações que privam vidas e podiam ser evitadas com um esforço coletivo. O que quero dizer é: das mais de 70.000 mortes de Covid-19 que registramos, algumas ou muitas poderiam ser evitadas se tivéssemos um sistema de saúde melhor antes da chegada da pandemia, nós já tínhamos problemas e a pandemia se potencializou com tais problemas. Nós temos milhares de mortes ligadas às violências, algumas ou muitas vidas poderiam ser preservadas se tivéssemos um sistema de segurança pública que proteja o cidadão e não as propriedades. Nós temos problemas educacionais sérios e muitas dificuldades que impomos a massa da população que poderiam ser evitados se tivéssemos uma educação preocupada com elxs.
A culpa é também do Estado e dos governantes, mas, a culpa é também de uma população que possui uma cultura da morte especial, uma cultura que trata a morte como uma entidade mística superior e que crê, sinceramente, que nós não temos nenhuma responsabilidade pelo como se realiza. Nós somos sim responsáveis pelo como se realizam as mortes, isto é um fato e não uma opinião.
Quando só nos importamos com a qualidade dos Hospitais quando vamos ser atendidos neles, estamos esquecendo que o Hospital não serve somente a mim. As condições do Hospital precisam ser boas permanentemente para todos, assim, salvamos algumas vidas a mais que o "normal", assim um sujeito tem possibilidade de enfrentar aquilo no qual não tem domínio, a doença. A segurança pública só é objeto de preocupação quando somos alvo da violência, mas, não deveríamos nos preocupar sempre, como todos que sofrem violência, assim, poderemos proteger mais que o "normal", respeitando cada sujeito e sua forma de realizar a sua existência? O desemprego é um fenômeno que afeta muita gente, mas, só nos preocupamos com ele quando estamos desempregados, evitar ao máximo deixar uma pessoa vulnerável ou com o risco eminente da fome não parece justo sempre?
Em suma, o que estou querendo dizer é: nós temos uma cultura que é um fator bastante responsável por estarmos onde estamos. Quando vamos pensar em nossa cultura e tratar estes modos de existir que coloca a vida das pessoas em risco? Quando vamos nos dar conta que o "cada um que se vire", é isso que temos, trouxe e trará consequências diretas e indiretas? Quando vamos nos entender como um coletivo? Quando vamos entender que o que uma pessoa pensa individualmente é muito importante, mas que somos impelidos dado a nossa cultura a lidar com Outros e que os outros se constroem do mesmo jeito que o Eu, enfrentando as demandas da realidade?
Por fim, quando vamos entender que respeitar a vida é não permitir que o evitável, que seja uma pessoa ou milhares, sejam salvos? Quando vamos entender que as responsabilidades pela vida envolvem significar a morte? Quando vamos pensar sobre nossa cultura da morte?
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